Nunca cheguei a um país com tanta expectativa, e tantos preconceitos.
O local: Portugal.
A razão: quase tudo o que eu sabia do lugar antes de chegar veio de uma fonte duvidosa – os brasileiros.
A razão: quase tudo o que eu sabia do lugar antes de chegar veio de uma fonte duvidosa – os brasileiros.
Comecei a estudar português em 2003, visitei o Brasil pela primeira vez em 2004, e, em 2008, passei a morar no Brasil. Francamente, nunca dei muita bola para Portugal, apesar de ser o país que colonizou o Brasil e ser o lugar de origem dos antepassados de muitos brasileiros. Mas sem querer, absorvi muita “informação” sobre Portugal dos brasileiros, sem nem pensar se era verdade, exagero, ou pura mentira.
Qualquer país gosta de tirar sarro dos seus ex-colonizadores. O exemplo que conheço melhor é o dos EUA e da Inglaterra. Segundo os norte-americanos, um inglês é alguém que:
- Tem dentes feios e deteriorados
- Come comida insípida
- Toma chá o dia todo, e cerveja quente a noite toda
- Mas, pelo sotaque elegante, parece tão inteligente e sofisticado e pode falar para um americano que dois mais dois são cinco e o americano vai acreditar.
É muito interessante comparar a imagem do país com a realidade. A última vez que estava na Inglaterra vi pelo menos algumas pessoas com dentes bons, mas ainda não acreditei na quantidade de chá que todos consomem.
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Agora vamos lá com o que os brasileiros me ensinaram sobre Portugal, e a realidade que encontrei.
- É impossível entender os portugueses, pelo seu sotaque esquisito e suas palavras mais ainda.
Até soube que alguns filmes e algumas novelas portugueses são dublados em “brasileiro” (e vice-versa). E já ouvi vários brasileiros falarem que é mais fácil entender argentinos falarem espanhol do que um portuga falar português.
Já sabia isto, mais ou menos, de algumas experiências com portugueses no Brasil e de alguns clips de futebol do YouTube com apresentadores portugueses (que no começo achei que fossem árabes, sério). Mas nada havia me preparado para o que encontrei em Portugal. Luísa, uma amiga portuguesa que veio me pegar no aeroporto do Porto (o aeroPorto?) me mandou um torpedo, dizendo que estava me esperando “junto à paragem de autocarro”.
Junto a que de quê?
Foi pior quando começamos a falar em português. (Quase sempre tinha falado inglês com ela até esse momento) Tive que prestar muita atenção e me esforçar muito para não rir da total falta de vogais. A pronúncia mais esquisita dela era a palavra “porque”, que juro que pronunciou “pr-q”. E não era só ela – logo percebi que era um país inteiro que parecia falar sem vogais, e alguns parecem nem abrir a boca. Sério. O país deve ter os melhores ventríloquos do mundo.
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Botei no Twitter: “Acho que quando Dom João VI transferiu a corte real pro Brasil em 1807, levou as vogais consigo!”. (Alguns portugueses que me seguem no @tuitesdo7 não gostaram muito disso. Ms fzr o q, né?)
No começo, quase não entendi ninguém – quando liguei para uma pousada (desculpa, hospedaria) em Coimbra, o senhor que atendeu me explicou que o quarto era 30 euros “sm peqn almç”. Pedi que repetisse várias vezes, mas até muito depois caiu a ficha: era “sem pequeno almoço”, que no Brasil seria “sem café de manhã”. Pouco a pouco me acostumei, aprendendo que ementa é cardápio e rapariga não é nenhum insulto. (“Rapazes e raparigas” virou minha frase favorita) Só não consegui lembrar de “autocarro”, saiu sempre “ôni-ups-autocarro”.
- Os portugueses tomam tudo o que você fala para eles ao pé da letra.
Parece que cada brasileiro que vai a Portugal volta com a mesma história: chega o elevador e pergunta para o português lá dentro “Tá subindo ou descendo?” e o tadinho do portuga responde “Tá parado”. De tantas vezes que ouvi a história parece que Portugal é o país com mais elevadores do mundo.
Não escutei nada tão absurdo e só uma vez ouvi algo parecido. Quando fui para o ótimo Museu Académico em Coimbra, que fica dentro de um prédio grande da Universidade de Coimbra, a porta estava fechada e tive que abrir para entrar. Perguntei ao senhor na recepção: “O museu está aberto?”. E me respondeu: “Acabas de entrar ou não?”. Nem sei se era piada ou não.
Mas percebi que os portugueses nem sempre reagiram tão bem à minha atitude meio-abrasileirada de brincar e ser extrovertido com os desconhecidos. Em Coimbra há um parquinho chamado “Jardim da Manga”, que não tem nenhuma mangueira, só laranjeiras. Achando esquisito, entrei no restaurante do lado (que também se chamava Jardim da Manga) e perguntei de muito bom humor o que tinha acontecido com as mangas do Jardim da Manga. Olharam-me como um maluco e em vez de explicar me deram um panfleto que explicava a história do lugar sem mostrarem nem um sorriso. (O nome do jardim deriva de quando o Rei João III passou pelo lugar e, vendo uma área vazia, desenhou um jardim na manga da sua camisa)
- Portugal é um país atrasado e irrelevante.
Bom, é óbvio a todos que as coisas não vão muito bem em Portugal. Mas irrelevante?
Bom, é óbvio a todos que as coisas não vão muito bem em Portugal. Mas irrelevante?
Minha impressão: comparado com o Brasil, um país em ascensão econômica e geopolítica, está virando meio-irrelevante mesmo, e os portugueses sabem disso. É um contraste grande com a relação entre os Estados Unidos e o Reino Unido, dois países com muito respeito mútuo (não sempre, mas em geral) e muito mais intercâmbio cultural, intelectual e político do que percebi entre Portugal e Brasil.
Foi durante minha estadia que o jornal The Guardian publicou uma matéria mostrando quantos portugueses estavam emigrando para Angola, Brasil e outros lugares. As áreas rurais que visitei eram povoadas quase só por idosos. Um português que conheci me disse com tristeza: “Portugal não produz mais nada”.
- Portugal é a fonte da paixão irracional que os brasileiros sentem pelo bacalhau.
Sempre achei esquisito que os brasileiros adorassem tanto o bacalhau. Segundo minha forma de pensar, bacalhau preservado com sal deve ser coisa do passado, da época das viagens de grande distância em barco.
Por isso, é ilógico insistir em bacalhau na sua forma salgada quando se poderia ter bacalhau fresco. É igual a preferir suco de polpa ao suco natural da mesma fruta. (Os leitores são bem-vindos a defender o bacalhau deixando um comentário abaixo)
Bom, nisto minha informação sobre Portugal era certíssima. Se no Brasil o bacalhau é muito popular, em Portugal é venerado.
Admito que preparado bem, o bacalhau pode ser até bom. Luísa me levou a um restaurante chique lá em Vila Nova de Gaia, Ar de Rio, situado na beira do Rio Douro com uma parede de vidro e uma vista dos prédios históricos do Porto do lado de lá do rio. Ela queria que eu provasse a açorda de bacalhau. Admito que o prato parecia maravilhoso: um verdadeiro morro de migalhas de pão em cima do peixe com pequenas batatas ao lado.
E estava delicioso (e bem barato: 17 euros – ou seja R$ 38 – para duas pessoas). Mas não parei de pensar em que delicioso seria se fosse feito com bacalhau fresco.
- Apesar de alguns produtos portugueses (como o fado), o país depende do Brasil para sua cultura popular, como novelas e música.
Acho que nisso eu estava meio-errado. Em vez de encontrar um Portugal fascinado pelas novelas brasileiras, por exemplo, achei os portugueses orgulhosos de estar produzindo as suas próprias novelas e pouco a pouco curando-se do vício das novelas brasileiras.
Mas a música brasileira aparecia muito, desde minha primeira noite no país: eu sentado no restaurante Democrática comendo chanfana (guisado de cabra com molho de vinho tinto) ao lado de um grupo enorme de alunos universitários que começaram a cantar. O quê? “Ai se eu te pego”, óbvio.
Nossa, tudo isso parece tão negativo, acho que não dá para perceber que adorei meu tempo em Portugal. Adorei mesmo. Semana que vem conto mais, mas vamos começar com algumas coisas que são muito melhores em Portugal do que no Brasil. Primeiro, quase tudo é mais barato. Segundo, as cidades históricas, os castelos e as ruínas romanas são incomparáveis com o que tem no Brasil. E que me desculpem todos os paulistanos que adoram o pão “francês”: O pão português, até na sua versão mais simples, tem mil vezes mais substância, mais sabor, mais caráter que o pão comum brasileiro.
Mas o que mais adorei de Portugal? No Brasil, apesar das minhas milhares de horas de esforços para aprender a falar português, nunca passo por brasileiro. É só ouvir meu sotaque em português e percebem rapidamente que sou gringo. Mas muitos portugueses escutaram meu português abrasileirado e a primeira coisa que me falaram foi: “És brasileiro?”.
Ah, portugueses queridos, é só continuar achando que sou brasileiro e eu vou voltar muitas vezes e até comer todo o bacalhau que vocês me derem.